Reproduzimos a seguir o comentário do jornal O Estado de São Paulo (Estadão), porque acreditamos que é muito interessante para os nossos leitores.
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Todos os sábados, um grupo de aproximadamente 60 fiéis ocupa o terceiro andar da mesquita do Pari, no centro de São Paulo, para uma aula de duas horas sobre o Alcorão. São comerciantes, médicos, artistas, dentistas, estudantes, ricos e pobres, de 18 a mais de 60 anos de idade. À esquerda da sala ficam os homens, enquanto as mulheres sentam-se à direita, e todos escutam o que tem a dizer um gaúcho de 39 anos, Rodrigo de Oliveira Rodrigues. À frente da Liga da Juventude Islâmica Beneficente do Brasil, instituição sunita, ele é o primeiro líder em São Paulo a fazer cerimônias em português.
“A maior parte das mulheres já está à procura de alguma religião quando chega ao islã, mas os homens vêm mais por curiosidade, gostam e ficam”, diz Rodrigues sobre o perfil dos muçulmanos brasileiros não árabes.
Filho de pais católicos, o sheik converteu-se por volta dos 14 anos em uma mesquita de Porto Alegre. Depois de um curso na Arábia Saudita, ele se tornou referência religiosa no Sul e há menos de dois anos foi chamado para ser o primeiro sheik brasileiro em uma mesquita administrada por libaneses. Rodrigues diz que, em média, dez pessoas por mês são convertidas ao Islã apenas no Pari.
Apesar de nas periferias o crescimento do Islamismo estar associado ao movimento negro, fiéis e especialistas dizem que há conversões de brasileiros em todas as regiões e não há um perfil socio-econômico determinado. Assunto sofre carência de estudo acadêmico.
Ali, na Favela Cultura Física, a comunidade muçulmana cresce pelas mãos de Cesar Matheus, o idealizador do espaço que adotou o nome de Kaab Al Qadir. “A minha esposa não é muçulmana, e meus filhos não são todos muçulmanos. Só um é muçulmano, e eu amo todos da mesma forma. Meus pais são evangélicos, eu amo eles da mesma forma”, ele diz.
As novas conversões estão gradualmente mudando também o público das mesquitas mais tradicionais de São Paulo. O ex-rapper e ativista Honerê Al Amin, fundador do grupo de cultura hip hop Posse Haussa, hoje é uma das figuras mais conhecidas na mesquita de São Bernardo do Campo, historicamente frequentada por descentes de sírios e libaneses. “Hoje eu encontro um grupo razoável de brasileiros frequentando as mesquitas, coisa que dez anos atrás você não imaginava que poderia acontecer” diz Honerê.
“O que eu posso dizer é que o islã está crescendo em todos os lugares, temos irmãos ex-presidiários que hoje são muçulmanos”, ele diz. “Temos a perspectiva de que, independente do que a pessoa fez no passado, se ela escolheu o Islã como meio de vida, será bem vinda.”
‘Muçulmanos precisam reformar linguagem para alcançar mais a periferia’, diz rapper convertido
Na favela Cultura Física, em Embu das Artes, o islã já chegou; sala aberta em uma rua estreia e íngreme reúne jovens nas cinco orações diárias
Há cerca de seis anos, o movimento negro em São Paulo começou a redescobrir suas raízes muçulmanas e a resgatar histórias como a revolta dos malês, rebelião que aconteceu em 1835, em Salvador, na Bahia. Nas posses – grupos de hip hop que se encontram na rua -, começaram a ser discutidos o livro e o filme sobre a biografia de Malcolm X, líder do movimento negro e um dos grandes expoentes da religião nos Estados Unidos durante a década de 60. Nascia um grupo de muçulmanos com uma nova identidade.
“Nós somos o foco de resistência na religião, estamos ainda na trincheira”, afirma o rapper muçulmano Leandro Di Função, que lembra de tempos não distantes em que o penteado black power era repreendido em mesquitas tradicionais. Para ele, os muçulmanos precisam reformar sua linguagem para alcançar mais jovens da periferia.
Na favela Cultura Física, em Embu das Artes, isso já está acontecendo. Há cerca de dois anos, em uma rua estreita e íngreme que sobe o morro do Jardim Santa Rosa, uma sala de oração dedicada ao islã foi inaugurada por Cesar Matheus, que adotou o nome de Kaab Al Qadir. A mussala serve para que muçulmanos da região, afastada das mesquitas da cidade, possam fazer suas cinco orações diárias.
Em uma tarde de sábado, enquanto a poucos quarteirões o som do hip hop preenchia as ruas da comunidade e um grupo de jovens tingia muros com grafite, os organizadores do evento cultural saíam discretamente em direção à mussala para a oração do pôr do sol. Eram os integrantes da banda Organização Jihad Racional, grupo de rap que até pouco tempo estava desativado. Antes do show que marcaria seu retorno, os músicos rezaram na mussala ouvindo as preces em árabe que eram recitadas pelo filho de Kaab, de 12 anos.
Formado por três brasileiros convertidos ao islã, após anos de recesso o grupo reviu seus conceitos musicais para se adequar aos preceitos muçulmanos e voltar à atividade com um novo formato. Batidas eletrônicas foram dispensadas, o som agora é feito apenas com as vozes, e o conteúdo das letras é político – sem citar o islã, como grupo já fez em trabalhos anteriores. Música e religião não se misturam, dizem os integrantes.
“Eu não posso esquecer que sou muçulmano quando canto rap”, diz Lucas Rua, de 29 anos, que hoje se apresenta como Mohammad Abdul Malik e é o integrante mais novo da Organização Jihad Racional.
Meses antes de se converter ao Islã, um sonho estranho fez com que Malik refletisse sobre religião. No sonho, ele estava perdido em uma praia quando foi abordado por um homem de túnica branca, típica das peregrinações a Meca, que lhe disse: «Allahu Akbar» («Deus é maior», em árabe). Ele não conhecia o idioma.
Pouco depois, ele descobriu a tradução da frase ao assistir um filme e começou a estudar o Alcorão. Aos poucos, conheceu os preceitos do islã, aprendeu suratas e decidiu se converter. Hoje ele tem uma explicação social para a conversão de jovens de periferia que, como ele, se interessam pela religião.
Exclusão social. A própria biografia do profeta Mohammad é marcada pela exclusão social, de acordo com o Alcorão e registros históricos. Ele era órfão e analfabeto, e entre os primeiros convertidos estavam escravos e pobres. “Eu acho que quando a pessoa da periferia lê (o Alcorão) e se identifica, ela fala: ‘Espera aí, ele está falando de mim’», diz Malik.
Khaled Zogbi, de 40 anos, é um comerciante ambulante de origem libanesa que havia se afastado da religião porque morava muito longe de qualquer mesquita. Ele também foi acolhido na mussala, com sua filha e a mulher, que está grávida e se converteu ao islã há quatro meses. “A mesquita mais perto da minha outra casa é a de Santo Amaro, e preciso pegar duas conduções pra chegar até lá”, explica Zogbi. “Como somos em três na família, outro dia gastei quase R$50 na viagem.”
Na sede da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras) no Jabaquara, zona sul de São Paulo, centenas de cartas chegam mensalmente pelo correio com as mais diversas perguntas sobre o Islã. Os remetentes são presidiários de todo o Brasil, em lugares como a Penitenciária do Coari, no Amazonas; o Complexo Lemos de Brito, em Salvador; e os presídios de Mirandópolis e Itirapina, no interior paulista. Endereçadas à Fambras, as mensagens são lidas por uma funcionária e entregues aos sheiks mais experientes da organização, responsáveis pelas respostas e orientações aos presos.
Cerca de 50 presidiários, em todas as regiões do País, trocam correspondências com a Fambras atualmente. Por meio das cartas, pedem livros sobre o islamismo, tapetes e vestimentas para oração. Também tiram dúvidas espirituais sobre os dogmas do Alcorão. Pelo menos metade dos correspondentes – homens e mulheres – já se converteu ao Islã dentro das prisões. Esse número pode ser ainda maior, pois ao menos duas mesquitas na região metropolitana de São Paulo relatam que também recebem cartas de presidiários e enviam material de estudo e reza quando solicitado.
“O que eu tenho visto são pessoas que dizem estar abandonadas”, diz o sheik moçambicano Yussufo Omar, que trabalha na federação e ajuda a responder às cartas. “Eles dizem que estão procurando ficar tranquilos e sair da prisão com uma mente que não é como antes e, sim, uma pessoa normal e aceitável.”
A Penitenciária Feminina de Santana, na zona norte da capital, teve no começo deste ano uma visita do coordenador do projeto e diretor de assuntos islâmicos da Fambras, o sheik Khaled Eldin. A intenção era atender muçulmanas que já trocavam cartas com a instituição, até mesmo seis marroquinas que estão no presídio desde 2011. Tapetes, roupas de oração e livros foram distribuídos. Também foi realizada palestra sobre os preceitos do Alcorão às interessadas.
A Fambras pretende organizar novos eventos para divulgar a religião dentro de presídios no futuro, mas diz que ainda não há planejamento para isso. Eldin afirma que seu trabalho não envolve pregação, apenas atende à demanda de quem já está interessado no islamismo. “O objetivo desse projeto não é que as pessoas abracem a religião, mas é a apresentação da verdadeira imagem do Islã.”
Nos Estados Unidos, desde o fim da década de 1940 existem programas que divulgam o Islã em prisões. Há aproximadamente 350 mil prisioneiros muçulmanos no país, de acordo com relatório de 2013 do Institute of Social Policy and Understanding (ISPU).
A conversão ao islamismo em presídios da Europa já foi associada ao terrorismo em casos isolados. Chérif Kouachi, um dos irmãos que invadiu a sede do jornal francês Charlie Hebdo, teria sido recrutado para o extremismo enquanto estava prisão. Isso fez com que o governo francês permitisse até mesmo mais visitas de religiosos muçulmanos a presídios com a intenção de combater o radicalismo. A iniciativa é similar aos programas americanos. Mas, na França, o governo optou por dialogar diretamente com os sheiks e mesquitas, que não são representados por grandes associações como nos Estados Unidos. A Fambras é enfática ao dizer que suas orientações a presidiários brasileiros é a de seguir preceitos pacíficos.